Quarta-feira, 06 de abril de 2022
É comum que novas tecnologias ou tendências do mundo digital tenham impacto direto nas relações jurídicas – ensejando, inclusive, conflitos legais – e levantem a questão sobre como o direito irá conciliá-los com base no ordenamento jurídico vigente.
Nos últimos anos, os chamados NFTs (tokens não fungíveis, tradução direta do termo em inglês “non-fungible token”) têm tomado os holofotes pela grande popularização entre investidores, entusiastas de criptomoedas e diversas celebridades, movimentando receitas milionárias. De forma geral, eles são certificados digitais que autenticam a propriedade de um item também digital, permitindo que seja transferido ou vendido pelo proprietário, normalmente por meio de transações com criptomoedas.
Ao serem denominados “não fungíveis”, significa que não podem ser trocados por outros da mesma espécie, como ocorre com o dinheiro ou as criptomoedas. Para uma explicação mais técnica, eles são registrados no banco de dados conhecido como Blockchain, isto é, uma plataforma na qual se faz a validação de transações entre os usuários, garantindo segurança, transparência e descentralização. São comumente utilizadas para registro de operações envolvendo criptomoedas, como o famoso Bitcoin.
A utilização tem sido tão expressiva que a Receita Federal anunciou, no final de fevereiro de 2022, as novas regras para a Declaração Anual de Imposto de Renda, dentre as quais houve a determinação de que os investidores declarem a posse de tokens não fungíveis, inclusive com a criação de um código específico para lançamento.
O Superior Tribunal de Justiça já se manifestou sobre a possibilidade de atribuir um caráter infungível a um bem fungível, ao afirmar que a infungibilidade pode ser objeto de acordo das partes, ao individualizarem o bem na celebração de um contrato de compra e venda, seja pela exteriorização de marcas, sinais ou número de série, seja por alguma outra forma. Em outras palavras, o STJ entende que a infungibilidade de um bem é fruto de sua individuação.
São inúmeros os itens digitais que podem ser convertidos em NFTs, como imagens, livros, vídeos, itens de jogos, domínios de sites, posts em redes sociais e o mais comum dentre eles: artes digitais. Esses bens serão digitalmente únicos, mediante registro de propriedade do dono sobre aqueles ativos, tornando-os comerciáveis. Para o mundo do comércio e investimento em artes, portanto, possuir o NFT de uma obra representa ter a propriedade reconhecida sobre aquela peça e a possibilidade de lucro com a sua valorização ou a popularização do artista.
Trata-se, certamente, de uma tecnologia há muito almejada por criadores de obras digitais, que acabam sendo facilmente replicáveis na internet. Isto porque permite estabelecer um sistema de registro que confere à obra o caráter de única e imutável.
As suas aplicações são inúmeras. Existem bandas e artistas oferecendo itens digitais únicos em formato NFT para os fãs, como versões de luxo de álbuns, ingressos para shows com vantagens exclusivas e vídeos, que são leiloados e então vendidos. Há, também, autores criando versões NFT de suas obras literárias para serem comercializadas, sem falar na venda de filmes neste formato, sendo uma boa medida contra a pirataria e falsificações. O motivo é que ele se torna rastreável e à prova de duplicidade, sendo que aquele que detiver o ativo digital registrado como NFT será o único titular desse ativo certificado.
Um mercado tão amplo e tão valorizado, contudo, tem suas implicações jurídicas, que já começam a ser verificadas na prática, especialmente no que se refere aos direitos autorais. Possuir um NFT não concede automaticamente os direitos sobre uma obra original, servindo apenas como um recibo digital indicando que o proprietário possui uma versão daquela obra, sendo que a percepção dos compradores sobre o que possuem ou não muitas vezes não corresponde à realidade jurídica, inclusive por uma falta de transparência das empresas envolvidas nessas transações.
Um exemplo prático se tornou famoso no começo deste ano, quando uma organização para arrecadação de fundos adquiriu, em leilão, uma edição rara de um livro de ficção científica, pagando cerca de 2,66 milhões de Euros. Em seguida, anunciaram a intenção de transformar e registrar a edição como tokens não fungíveis para produzir uma série animada inspirada no livro, vendendo-a a alguma plataforma de streaming.
Ocorre que, ao se adquirir a cópia de um livro, física ou digital registrada, obtém-se a propriedade tão somente daquela cópia, enquanto os direitos de utilizar, fruir e dispor da obra permanecem com o autor. A relação entre autenticidade e valor de uma obra, nesses casos, muitas vezes é confundida com direitos autorais.
A compra de um NFT não pode ser confundida com a cessão de direitos sobre a obra. Isto é, o comprador adquirirá tão somente uma versão registrada, certificada e única do NFT, podendo revendê-lo, ressalvados eventuais percentuais de royalties devidos ao autor da obra, em decorrência da sua comercialização.
Considerando que qualquer pessoa, a princípio, pode criar um token não fungível, é preciso observar alguns detalhes ao se criá-lo, adquiri-lo ou comercializá-lo. Na medida em que o NFT é utilizado como a representação de algo previamente existente, ou outra forma de exploração de uma obra anterior, é importante observar se aquele que a registrou detém as autorizações para tanto.
Deve ser verificado se as autorizações concedidas anteriormente à obra preexistente – a exemplo do direito personalíssimo de imagem, licença de uso de fonogramas, músicas, fotografias, ilustrações, entre outras – preveem a sua futura disponibilização no formato. A Lei nº 9.610/98, que consolida a legislação sobre direitos autorais no Brasil, exige que o uso de quaisquer obras autorais deve estar expressamente descrito no documento que formalizar a sua transmissão.
Nos termos da Lei de Direitos Autorais, conclui-se, ainda, que a disponibilização de uma obra autoral em NFT deve respeitar tanto os direitos morais como os patrimoniais do autor. O artigo 24 prevê o direito moral do autor a ter o seu nome, pseudônimo ou sinal indicado na obra. Isto é, caso uma obra em NFT seja vendida ou revendida sob a égide do direito brasileiro, ela deve indicar a correta autoria nos créditos.
O artigo 29, por sua vez, traz uma previsão interessante sobre os direitos patrimoniais do autor, ao afirmar que dependerá de sua autorização prévia e expressa a distribuição da obra por meio não expresso em contrato, bem como a sua inclusão em base de dados, armazenamento em computador, ou “quaisquer outras modalidades de utilização existentes ou que venham a ser inventadas”, o que certamente abrange a utilização de tokens.
A realidade é que a disponibilização de uma obra em formato NFT não substitui as formas de registro definidas em lei. No ordenamento brasileiro, a autoria de uma obra advém de sua própria criação, e não por meio de seu registro. Contudo, caso haja o interesse de se registrá-la para gerar efeitos perante terceiros, é possível proceder com o seus respectivos protocolos, a depender da obra, junto à Biblioteca Nacional, cartórios de registro de títulos e documentos, dentre outros.
O Instituto Nacional da Propriedade Industrial – INPI é a autarquia federal responsável pela gestão do sistema brasileiro de concessão e garantia de direitos de propriedade intelectual. Independentemente do ativo digital utilizado, caso ele contenha item ou representação protegida por propriedade industrial, é essencial observar o direito precedente ao caso e as diretrizes da autarquia responsável.
O registro previsto na Lei nº 9.279/96, que regula os direitos e obrigações relativos à propriedade intelectual no Brasil, também não poderia ser substituído pela mera certificação de propriedade de um bem digital, dependendo também de concessão do registro pelo INPI para obter direito de exclusividade ao uso em todo território nacional e direito de impedir o uso indevido por terceiros.
O que pode ser discutível, contudo, é se uma marca explorada em formato NFT poderá ser utilizada para fins de comprovar a precedência ao registro prevista no parágrafo 1º do artigo 129 da lei, isto é, para cumprimento do requisito de utilização de marca idêntica ou semelhante há pelo menos seis meses da data da prioridade ou depósito de marca, em sinal de boa-fé.
Todos esses fatos levam à conclusão de que, muitas vezes, os usuários, investidores e entusiastas dessa tecnologia não são devidamente informados das implicações legais dessa “tokenização” das obras físicas e digitais, especialmente em se tratando da sua exploração econômica.
Existem inúmeras plataformas que permitem a criação de NFTs, sem, contudo, observar direitos anteriores que possam ser aplicados àquela obra, mídia ou ativo. Com isso, essas plataformas rentabilizam as transações de NFTs, enquanto a responsabilidade de observância do direito de terceiros é repassada aos usuários por meio do aceite de termos de serviço, pelo qual declaram, sem conhecimento, não estar infringindo direitos de propriedade intelectual.
É desafiador vislumbrar todos os impactos dessa tecnologia nas relações jurídicas, por serem incertas as diferentes formas de aplicação e exploração dos tokens não fungíveis. Aquele que o comercializa deve se assegurar de ter os direitos de exploração da obra nesse formato para que não haja violação de direitos de terceiros. Da mesma forma, é necessário que as empresas e plataformas envolvidas nessas transações sejam transparentes quanto à realidade jurídica destes certificados de propriedade, especialmente no que se refere à disposição das mídias ou obras registradas. De todo modo, é recomendável que, anteriormente a esse tipo de aquisição ou investimento, obtenha-se uma assessoria jurídica especializada.
Advogado atuante na área de direito empresarial do escritório Dosso Toledo Advogados. É pós-graduado em Direito Processo Civil Empresarial e possui graduação em Direito, ambos pela Faculdade de Direito de Franca (FDF).
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