Minha motivação para escrever esse artigo nasceu de minha participação no debate com o pessoal da Casa do Saber em que discutimos o uso de ferramentas de Inteligência Artificial (IA) no combate à pandemia do coronavírus, a partir das reflexões do pensador e escritor israelense Yuval Noah Harari, autor de Sapiens e Homo Deus.
Vou repetir o que aprendi com André Blazko (professor da ESAMC e da Unicamp). Ele me disse que:
“I.A. nada mais é que a união da ESTATÍSTICA com a COMPUTAÇÃO. Você poderá, por exemplo, capturar milhões de dados e transformá-los em cálculos de propensão rapidamente”.
Um exemplo é citado por Harari, em recente artigo no Financial Times, “The World after the Coronavirus “, no qual cita a China. Lá, câmeras de segurança fazem o reconhecimento facial das pessoas nas ruas. Esses dados são cruzados com o comportamento das pessoas no celular (exemplo: localização) e, por fim, com os dados de saúde (exemplo: temperatura corporal) que as pessoas são obrigadas a colocar no sistema. Assim, o governo procura predizer se uma pessoa está doente antes mesmo de manifestar sintomas ou pode sugerir locais da cidade para você evitar.
Na nossa matriz, ficaria assim:
Harari chama isso de escolha entre Vigilância Totalitarista e Empoderamento do Cidadão. Mas podemos chamar de liberdade. Até onde vai nossa liberdade em favor do coletivo?
Imagine receber uma mensagem do governo mandando você ficar em casa no dia do seu aniversário, tendo que cancelar sua festa, sendo que que você não apresenta nenhum sintoma, “só porque o governo quer”. Você cancelaria? Dá pra confiar na idoneidade do governo quando ele faz essa sugestão? E se ele tiver outros interesses?
Harari diz que “os algoritmos vão saber mais da sua vida do que você mesmo”. E concordo 100%. Como vimos, poderá saber que você está adoecendo antes mesmo de você.
Quando dispositivos móveis de IoT (Internet das Coisas) se conectam, como os relógios inteligentes (smartwatches), os modelos preditivos acima ficam ainda melhores. E se o governo obrigar toda a população a usá-los? Ele poderá saber se você gostou do presidente falando em rede nacional só pelo monitoramento dos seus sinais vitais.
Seguindo a mesma linha, as marcas poderão saber a reação que suas propagandas criam nas pessoas quando um comercial está no ar! Ou então saber qual comercial faz as pessoas entrarem no site, clicar ou comprar algo. Mas e a nossa liberdade de sentir sem compartilhar?
Nossa matriz ficaria assim:
Outro tema interessante é o livre arbítrio. Harari acha que delegamos nossa vida para os algoritmos graças ao que ele chama de “utilitarismo” dessas aplicações. Exemplo: o Waze é tão bom ou melhor que você para escolher uma rota que você aceita que ele cuide das suas decisões.
Meu questionamento vai além e gosto de citar os livros Rápido e Devagar (de Daniel Kahneman) e Previsivelmente Irracional (de Dan Ariely), que mostram quantos “bugs” a nossa mente tem. Estudos indicam que o dia em que há maior quantidade de erro médico é sexta-feira (nunca marque sua cirurgia neste dia!). Os juízes dão mais sentenças de condenação quando a audiência ocorre antes do almoço (quando estão com fome), e somos influenciados por números recentes antes de tomar qualquer decisão racional. Vale a leitura! A dica para pedir aumento de salário é a melhor. Se contarmos os casos de viés de gênero e cor, então, infelizmente não cabem em uma enciclopédia.
Essencial para o sucesso de um “profissional de marketing elevado à inteligência artificial” é ser mais analítico e menos expert. Ou seja, confiar mais nos dados e saber como trabalhar com eles – e confiar menos na intuição, na experiência vivida. Usar a estatística a seu favor.
Estamos só no começo da IA e muita coisa ainda vai acontecer. Uma matriz que ilustra bem os possíveis impactos está no livro Inteligência Artificial, de Kai Fu Lee. Ele apresenta dois eixos:
Na imagem conseguimos ver as profissões teoricamente mais seguras no alto/ à direita (alta destreza, em ambiente desestruturado, social) como, por exemplo, fisioterapeutas e CEOs. No lado oposto, aqueles com maior risco, como o atendente de telemarketing.
Harari acredita que a IA vai nos libertar de processos repetitivos e burocráticos, ao mesmo tempo que valoriza a criatividade das pessoas.
Eu gosto de ir além e pensar que IA pode ajudar a retirar uma camada de experiências ineficientes das nossas vidas. Tem tanta coisa que não faz sentido e que gastamos horas e horas por aí. Startups adoram esse tema e eu gosto do exemplo do aplicativo:
Imagine que uma pessoa tentou três vezes fazer uma operação no app do banco e não conseguiu. É domingo. Em seguida, ela liga no banco e adivinha só? O banco pede as senhas, o número da conta e passa por três atendentes antes de dar uma solução.
Se tivesse aplicado o mínimo de tecnologia (e bem pouquinho de IA), não precisaria pedir todos os dados e gastar minutos preciosos dos operadores e do sistema de call center. Bastava reconhecer o número do telefone, cruzar com o dono da conta, aplicar regras de antifraude e não perguntar nada sigiloso – afinal, a pessoa não queria saber o saldo. Ela só não sabia que deveria clicar o botão “x” ao invés do botão “y”. Pronto, aqui todos ganham vários minutos de vida.
Esse é só um exemplo de como IA pode melhorar a experiência das pessoas/consumidores e o quanto isso pode reduzir ineficiências, além de dar tempo e dinheiro para as pessoas.
A IA é democrática, tem códigos abertos, está na nuvem e roda até em programas gratuitos. Quem quer se transformar pode fazer com muito pouco investimento. A partir daí é só ter um pouco mais de criatividade e pronto! — você já pode trilhar o caminho do profissional de marketing elevado à Inteligência Artificial.
(*) Fernando Teixeira é diretor de soluções e estratégia na Adobe para a América Latina.