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Segredos e aprendizados na minha carreira de produtora de conteúdo

Conteúdo cru, nada é mais íntimo do que uma ideia nascendo. Tem suor, tem insegurança… Mas ver alguém reagir com sua obra é o ouro do nosso trabalho

 

Preste atenção na cena abaixo, ela irá permear o que realmente defino como a essência, a observação, o resgate, as memórias e a responsabilidade na profissão que escolhemos: produtores de conteúdo. Talvez seja mais raso do que isso, mas explica um pouco do caminho que percorri para criar meu método. E não, não tem nada com gastronomia aqui, vem antes, bem antes.


Obra: Oswaldo Goeldi.
Obra: Oswaldo Goeldi.
Obra: Oswaldo Goeldi.

 

 

 

 

 

  Cena 1 – Interna Noite

Dema descansa relaxado no sofá, depois de um dia estressante de trabalho. Num pequeno espaço de tempo, entra num estado de quase sonho.

(BARULHO DE DISCUSSÃO LONGE)

Acordado e assustado, ele procura pelo som. Se dá conta que adormeceu, a TV anuncia a programação da madrugada. O que será que aconteceu em um cochilo? Seria um sonho, talvez um pesadelo!

(SOM ABAFADO DE UMA PESSOA COM DOR)

Olhar atento pela janela no alto do sobrado, a vista era da rua levemente molhada pela garoa com neblina. Procurando o perturbador som de pedido de ajuda, seus olhos avistam 2 homens, um agachado, outro em pé. Os sussurros não entregam o que está acontecendo, mas a arma na mão, é cena previsível da terra sem lei na periferia de SP.

VOZ OVER: Todo mundo na gaiola, ninguém merece essa selva. Vai logo e acaba com isso…
Lentamente e sem ser notado, Dema se afasta da janela.

(SOM DE TIRO// SEGUNDOS DEPOIS, GRITOS E CONFUSÃO)

Dema vai para o quarto se deitar, ainda com o coração batendo forte, mas finge para si mesmo não ter visto a cabeça de um desconhecido explodir, naquela noite silenciosa de inverno no final dos anos 80.
CORTA PARA //


 

Esse foi o meu roteiro, mas não havia decidido ainda se seria um longa, um curta ou quem sabe um clipe de RAP. Essa cena me perseguiu por anos nos meus flashes criativos, porque algo nela me incomodava: era real. Era a descrição de um fato. Sim, havia dispositivos e técnicas de dramaturgia, mas não podia fugir que aquela alegoria era a realidade do onde eu nasci e cresci.

Quando meu pai contou essa história, eu comecei a desenhar na minha cabeça todos os passos de um matador de aluguel, quase um serial killer, onde a testemunha oculta, na verdade era a representação da sórdida cumplicidade com o crime, que solava as grandes cidades com seus costumes. Um estado triste e decadente de normalidade, ninguém ali se arrepiava com sangue, era só mais uma noite nebulosa e sem resposta.

No meu primeiro roteiro, o protagonista era o homem sem nome, morto e deixado na esquina para que todos os trabalhadores vissem logo cedo. Entretanto, à medida que ia escrevendo, eu me deixava levar pelas informações que saiam da boca de meu pai, ignorava sempre o passado da vítima. Então, precisava de recursos que levassem ao motivo da morte, talvez uma vingança que ultrapassou gerações, como uma novela. Ou, talvez, seria melhor o filme na versão da testemunha. A história de quem sobreviveu ao sistema poderia honrar as memórias de todos esses casos. Quantos gritos e suspiros ele havia memorizado em seus 40 e poucos anos de vida ali daquela janela?

Pesado começar a falar de história assim, mas precisava afirmar algo sobre esta obra que nunca saiu do papel e nem da minha imaginação. Nós, produtores de conteúdo, em geral, bebemos da nossa fonte antes de buscar outras inspirações e no meu caso crimes e tragédias eram as primeiras memórias da menina do extremo sul da cidade.

Bom, o filme nunca foi um longa-metragem, curta-metragem, nem cena de série de nenhum VOD. Mas sempre que penso, idealizo todas as etapas. Eu além de escrever, faria a direção do filme. Com todos os recursos necessários para compor o melhor suspense policial brasileiro. Eu tinha 10 anos quando pensei nisso como história, mas só fui começar a estudar dramaturgia e apresentar essa cena como exercício aos 17 anos. Um mundo gigante estava entre a menina impressionada com a história do pai e a roteirista que ali nascia.

Ambiciosamente, dentro de mim, acreditei que o primeiro passo seria roteirizar o que conheci. Detalhe, não havia todos os recursos que existem hoje na internet, naquela época, começavam as lan houses. Mas eu tinha minha bagagem, uma fonte inesgotável de causos pitorescos que havia vivido e ouvido todos aqueles anos em São José.

Se hoje retomasse esse roteiro, provavelmente usaria a versão do assassino como trama central, seria a visão do homem conhecido como justiceiro. Demorei para entender o que significava matador de aluguel naquela época. Com tantas formas de contar a história, poderia fazer essa cena em três versões – cada uma com uma visão. Quem sabe em uma oficina de roteiro com jovens, que assim como eu, estiveram vulneráveis a esse tipo de contato com a violência.

Usaríamos a tecnologia disponível para todos: o celular. Assumiria isso como estética e o lançamento totalmente digital nas redes sociais. Pronto, deixou de ser uma ideia para se tornar um produto.

Sabe o que tudo isso significa? Que uma IDEIA pode ser estabelecida de memórias e vivências, não precisa ser do criador, mas ela precisa existir para que o seu trabalho seja vivo e gere movimento. O processo é o mesmo desde sempre, o que nos colocou em um lugar melhor é a tecnologia, que permitiu democratizar a produção, compartilhar nossas ideias e conhecimento sobre assuntos diversos e nos aproximar de culturas tão distintas.

Toda vez que trago essa história à tona, me pego pensando no que verdadeiramente é o conteúdo e como ser um bom contador de histórias.

Me vi equacionando os recursos dentro de uma possível realidade de produção. O que a maioria de produtores fazem ao planejar seus filmes, suas séries, suas matérias, projetos, obras. Eu me pergunto o tempo todo: o que faz um projeto ser elogiado e envolvente? Seria o dinheiro empregado nas etapas de produção? Seria a escolha da equipe para realizar? Os equipamentos que usamos? Ou simplesmente a história a ser contada?

Ficou claro que nada disso é pertinente se não houver o embrião saudável: a ideia. Sim, é clichê dizer isso. Previsível e declarado. Quem tem boas ideias já sai na frente isoladamente e com tanta ampliação e potencial de recursos e tecnologias, muitas vezes nos pegamos primeiro desenhando a imagem de um discurso que nem sabemos se consegue sobreviver em uma sabatina de seleção.

O primeiro passo é caçar uma VERDADE, não que ela seja absoluta ou tenha que ditar sua linguagem ou seu caminho como realizador. Mas precisa ser algo que você consiga dominar, digerir, defender e materializar. Esse processo criativo gera em muitos autores/diretores quase uma obsessão. Cada um escolhe uma maneira de mergulhar. O uso da palavra imersão não é à toa. Porque começa a gerar vida. O projeto vai ganhando corpo, cor, sustentação e legitimidade.

Preservar a sua essência está totalmente associada a escolha do seu projeto. Ficção? Para cinema? Multi tela? Reality ou Série? Documentário? Biográfico?

A fonte desde sempre é a mesma. Observar, estudar, experimentar e, claro, estar atento em como usar a tecnologia a seu favor. Tem muitos caminhos para seguir e a quebra da tela fez tudo se transformar em uma infinidade de oportunidades.

Acredito que esse seja o melhor dos mundos. Entender onde você se enxerga no conteúdo. Porque a real é que não existe receita pronta, o que funciona para mim, pode ser um fiasco para o seu projeto e vice-versa.

Alimente as diferenças, não com a pressão de ser original, inovador… Essas expressões mais travam do que soltam sua criatividade. Antes de mais nada, todos bebemos de fontes que geralmente conhecemos, já disse isso aqui, esse é o primeiro passo.

O mercado não é mais o mesmo, temos uma revolução em menos de um ano. Então, acompanhar todo esse movimento é uma maratona interessante, mas a essência não muda. Todos precisamos antes de mais nada de uma boa história para contar, depois vem o resto: o dinheiro, a estética, a linguagem, as tecnologias, a estratégia, a distribuição, os desdobramentos, o alcance e assim por diante.

Com a engrenagem a todo vapor, as tecnologias vieram para aumentar nosso potencial de produzir, diminuindo tempo, melhorando entregas e aumentando a quantidade de talentos no mercado. Se tornar um produtor de conteúdo virou uma tendência e “a voz do povo tem tons diferentes”, como Machado de Assis descrevia em seus clássicos.

A estrutura social e econômica de um povo diz muito sobre onde a cultura alcança. Tudo isso fica ainda mais potente com conhecimento, aproximação, respeito e responsabilidade. Quando você escolhe um lado, está assumindo que terá que trazer a voz mais íntima e corajosa para representar pessoas, mesmo que seja só para entreter.

Uma certeza eu tenho nesses quase 20 anos de carreira no audiovisual, tudo que é feito para ser apreciado, precisa de um bom motivo para acontecer! Então vai lá e faça, coloque a lente de aumento sobre um tema e dê vida ao seu projeto. Não importa o que eu escolher fazer, ele será sempre um recorte de como lido com aquela realidade e como trarei as minhas VERDADES à tona.

Espero muito encontrar você para compartilhar experiências, sim, porque somos multiplicadores e isso nos dá mais força e mais inspirações! Um bom produtor de conteúdo gosta de ouvir o próximo. Bora trabalhar!

Com quase 20 anos de carreira, o audiovisual é parte da sua essência. Foi cinegrafista, editora, roteirista, pesquisadora, produtora e por fim diretora. Formada em Jornalismo. Já passou por diversas áreas de criação audiovisual, tais como ficção (curtas metragens, clipes, projeto de multimídia, comerciais). Escreve, produz, dirige.

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